A partir do advento da Lei nº 13.467/2017, as convenções e os acordos coletivos de trabalho ganharam prevalência sobre o legislado, especialmente quando tratarem dos temas elencados nos incisos do artigo 611-A da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o que está alinhado à disposição do artigo 7º, inciso XXVI, da Constituição Federal do Brasil (CFB).
Diante da dicotomia trazida pela Reforma Trabalhista, um caloroso debate se desenvolveu para compreender o potencial alcance dos instrumentos coletivos de trabalho, especialmente quanto a sua validade perante a Justiça do Trabalho.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF), não alheio às discussões travadas sobre a validade das normas coletivas e por meio do julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) 1.121.633, em 2 de junho de 2022, reconheceu a repercussão geral existente e afirmou a constitucionalidade dos acordos e convenções coletivas que pactuarem limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas.
A discussão chegou ao STF após decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) afastar a aplicação de norma coletiva que previa o fornecimento de transporte para deslocamento dos empregados ao trabalho e a supressão do pagamento das horas in itinere. Em suma, o fundamento da decisão se deu em razão da empresa Mineração Serra Grande S.A. estar situada em local de difícil acesso combinada com a ausência de transporte público nos horários de entrada e saída dos empregados.
Inconformada com a rejeição da aplicação da norma coletiva, a empresa sustentou, em seu apelo, que o TST teria ultrapassado o princípio constitucional da prevalência da negociação coletiva ao negar validade à cláusula.
Ao analisar o caso, o Exmo. Ministro Relator Gilmar Mendes fundamentou que há validade na convenção ou acordo coletivo de trabalho que disponha sobre a redução de direitos trabalhistas, desde que os direitos indisponíveis (assegurados constitucionalmente) não sejam violados.
A partir dessa visão, bem como através da análise da jurisprudência do TST e do STF, firmou-se o entendimento insculpido no Tema 1.046 que considera ser possível dispor, em convenção ou acordo coletivo de trabalho, ainda que de forma contrária à lei, sobre aspectos relacionados a: (i) remuneração (redutibilidade de salários, prêmios, gratificações, adicionais, férias) e (ii) jornada (compensações de jornadas de trabalho, turnos ininterruptos de revezamento, horas in itinere e jornadas superiores ao limite de 10 horas diárias, excepcionalmente nos padrões de escalas doze por trinta e seis ou semana espanhola).
Por isso, a respeito das horas in itinere, o entendimento não poderia ser diferente, já que a questão se vincula diretamente ao salário e à jornada de trabalho, temáticas em relação as quais a Constituição autoriza a elaboração de normas coletivas de trabalho, nos exatos termos dos incisos XIII e XIV do artigo 7° da CFB.
Logo, o entendimento consagrado pelo STF é pela validade das convenções ou acordos coletivos de trabalho, ainda que pactuem limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, com exceção dos direitos absolutamente indisponíveis, assim entendidos aqueles não passíveis de negociação coletiva, como se observa do rol do artigo 611-B da CLT e de certos direitos elencados nos incisos do artigo 7º da CFB.
Contudo, quando o objeto da norma convencional se refere às jornadas em turnos ininterruptos de revezamento, isto é, trata da organização de escalas que permitam o revezamento dos empregados, em turnos diurnos e noturnos, aquela regra geral estipulada pelo STF tem sido, muitas vezes, minimizada e não aplicada pela Justiça do Trabalho.
Nesse sentido, ainda há resistência de certos Tribunais Regionais do Trabalho e do próprio TST quanto à aplicação do Tema 1.046 por ocasião da análise da validade das cláusulas normativas que tratam dos turnos ininterruptos de revezamento, sob o fundamento de que a prestação de horas extras habituais seria uma forma de descumprimento da cláusula do instrumento coletivo celebrado.
Diante de tal entendimento, novamente tal matéria foi aduzida perante o TST, por meio do julgamento do Agravo de Instrumento em Recurso de Revista de nº 12111-64.2016.5.03.0028, interposto pela FCA Fiat Chrysler Automóveis Brasil Ltda., sendo que a 1ª Turma do TST negou provimento ao apelo, sob fundamento que o Tema 1.046 não poderia seria aplicado ante a habitualidade de prestação de horas extras, assim como dispõe, data venia, a ultrapassada redação da Súmula 85, inciso IV, do C. TST que fora inserida em 20 de junho de 2001.
Ressalta-se que, no julgamento do referido apelo, o Ministro Relator Luiz José Dezena da Silva do C. TST expressou que “o art. 7º, XXVI, da CF/88 não é um instituto sem freios, razão pela qual não pode ser utilizado para prejudicar o trabalhador, principalmente nas esferas da saúde e da segurança do trabalho”. Dessa forma, a cláusula que trata do turno ininterrupto de revezamento foi invalidada pelo 1ª Turma do TST.
Diante da não aplicação da tese fixada no Tema 1.046, a FCA Fiat interpôs Recurso Extraordinário ao STF, no intuito de reexaminar a matéria e, ao final, obter a validação da cláusula coletiva que tratava de turno ininterrupto de revezamento, sob a fundamentação que foi dada “interpretação que limita os efeitos de cláusula convencional vigente para a categoria profissional do trabalhador”, em afronta aos artigos 5º, XXXVI, e 7º, XXII, XIV e XXVI, todos da CFB.
Ao analisar a admissibilidade do Recurso, o Ministro Vice-Presidente Aloysio Corrêa da Veiga do TST entendeu por conhecer e admitir o apelo, determinando a sua remessa ao STF como representativo da controvérsia (RE 1476596), no intuito de definir se a prestação de horas extras habituais seria apta de invalidar (ou não) a norma coletiva que trata dos turnos ininterruptos de revezamento.
Dessa forma, a Controvérsia nº 50014 foi encaminhada ao STF, com o escopo de evitar decisões conflituosas e dissociadas da interpretação, com determinação da manutenção do sobrestamento dos recursos extraordinários em relação ao tema até o trânsito em julgado de decisão sobre a matéria.
Após análise e julgamento de tal recurso pelo Plenário, o STF publicou o Acórdão, em 18 de abril de 2024, o qual determinou a devolução do processo ao TST para que este adotasse o juízo de retratação, eis que fora reconhecido que o acórdão recorrido (proferido pelo TST) divergia do entendimento fixado pelo STF, por meio no Tema 1.046, conforme o disposto no inciso II do artigo 1.030 do CPC.
Em suma, o Exmo. Ministro Relator Luís Roberto Barroso entendeu que “o eventual descumprimento de cláusula de norma coletiva não é, de todo modo, fundamento para a sua invalidade” e, dessa forma, consignou em seu voto que o posicionamento adotado pela Justiça do Trabalho “não se tratou de exame de inadimplemento de cláusula, mas de anulação da negociação coletiva por suposta prevalência do legislado sobre o acordado”.
Ainda, o STF asseverou que há previsão expressa na CFB sobre a possibilidade de disposição, por convenção ou acordo coletivo de trabalho, de questões relacionadas às jornadas de trabalho, como se observa da redação do artigo 7º, inciso XIV, da CFB, destacando o voto do Exmo. Ministro Relator Gilmar Mendes, no ARE 1.121.633, no qual há menção expressa sobre a possibilidade de dispor, em negociação coletiva, assim como tratado no início deste artigo.
Diante de tal decisão, os autos foram reencaminhados para o TST, tendo a 1ª Turma desta Corte exercido juízo de retratação do caso. Em acórdão publicado em 15 de outubro de 2024, a decisão foi ajustada à tese fixada no Tema 1.046 do STF, sendo o Recurso de Revista da Fiat finalmente conhecido, por violação do artigo 7º, XXVI, da CFB. E no mérito, foi conferido provimento para pronunciar a validade da norma coletiva que fixou a jornada de trabalho dos turnos ininterruptos de revezamento, excluindo da condenação as horas extras deferidas sob a premissa da invalidade da norma coletiva, ainda que haja a prestação de horas extras habituais.
E nesse sentido, é possível notar na decisão algo ainda mais relevante: o acórdão foi expresso em consignar que a Súmula nº 423 do TST, sobre a qual se pautou o fundamento do acórdão regional, deve ter sua orientação mitigada para não confrontar ao quanto exposto no Tema 1.046 da Tabela de Repercussão Geral.
Dessa forma, o negociado coletivamente sobre turno ininterrupto de revezamento deve ser reconhecido como válido, diante da regra que for ajustada em âmbito coletivo, independente do quanto disposto em lei.
Embora o Tema 1.046 do STF já tratasse da possibilidade de disposição sobre turnos ininterruptos de revezamento por meio de negociações coletivas de trabalho, é certo que a decisão do Recurso Extraordinário 1.476.596 trouxe impactos sobre toda a prática jurisdicional trabalhista. O negociado ganha relevância e ainda mais robustez para justificar a sua legitimidade perante os tribunais, inclusive para mitigar a interpretação de verbetes sumulados ultrapassados e/ou desalinhados ao STF.
A tese fixada no Tema 1.046 trouxe a validação constitucional esperada para as negociações coletivas após a inclusão do artigo 611-A na CLT c/c a disposição do artigo 7º, inciso XXVI, da Constituição Federal, o que não exigirá a expressa indicação de contrapartidas recíprocas em tais instrumentos coletivos de trabalho, nos termos do parágrafo 2º daquele artigo celetista.
Por sua vez, o Recurso Extraordinário 1.476.596 trouxe consigo a consagração de cláusulas coletivas que tratam dos turnos ininterruptos de revezamento, que já não podem mais ter a sua invalidade decretada diante da realização de horas extras habituais.
A expectativa que se cria para todos os jurisdicionados, principalmente aqueles envolvidos e/ou destinatários das negociações coletivas, compreende a prevalência e ratificação do reconhecimento da validade de tais instrumentos perante as Cortes Trabalhistas, observadas as exceções previstas no artigo 611-B da CLT.
Por fim, uma certeza que se consolida (e que efetivamente se espera) é que a prática jurisdicional trabalhista não será mais a mesma, especialmente quanto à aferição da validade das cláusulas de instrumentos coletivos, que deverão ser aplicadas, mas sobretudo respeitadas, sempre de acordo com os parâmetros legais estipulados pelo STF.
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Colaborou para este artigo
Giovana Brentini Zancheta | Advogada na área Trabalhista de TozziniFreire